A roraimense Madá tinha 18 anos quando aceitou a oferta de emprego dos sonhos: ganhar R$ 4.000 por mês trabalhando como cozinheira em um garimpo na Guiana. Um homem, que ela conheceu em um bar perto de sua casa, em Rorainópolis, prometeu pagar seu transporte de avião, garantiu que ela só ia cozinhar e que os garimpeiros iam respeitá-la. Madá largou a escola no segundo ano do ensino médio, deixou a filha bebê com a avó e foi para o garimpo. “Resolvi conhecer o mundo...e fiz a leseira da minha vida”, conta. Em vez do garimpo, ela foi levada para um bordel em Georgetown, capital da Guiana. Lá, foi informada de que devia R$ 8.000 por despesas com passagem, comida e hospedagem e que ia ter que ficar no bordel “fazendo programa” até quitar a dívida.
A história de Cleuza se soma às dezenas de milhares de vítimas de estupro no Brasil —as mulheres são 86,9% de todos os casos registrados no país. Assim como ela, 85,2% delas conheciam o autor do abuso e 60% foram agredidas dentro de casa, com menos de 19 anos. Entre as crianças de até quatro anos, vai a 70% o total dos crimes cometidos na própria residência. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, feito com base nos boletins de ocorrência registrados em 2020.
Após duas décadas de um violento casamento, Samia estava bem-servida no cardápio de violências contra a mulher: psicológica, patrimonial, física. "Vamos dizer que, de humilhação, degustei de todas. Fui chamada de lixo, de porcaria", relata. "E ele gostava muito do meu pescoço, gostava de enforcar." Samia desculpava sempre. "Quando perdoei, perdoei por amor." As oscilações de humor do parceiro não pararam, até que o dia do "basta" chegou. Com ajuda do Justiceiras, rede de proteção a mulheres agredidas, Samia fez boletim de ocorrência e conseguiu uma medida protetiva. Fisicamente, o agora ex-marido não pode chegar perto. Veio então o cerco virtual.
Ex-chefe de gabinete e sucessora política da vereadora Marielle Franco —assassinada em março de 2018—, a deputada estadual Renata Souza (PSOL) chora ao recordar o papel da amiga em sua trajetória profissional. Cria do Complexo da Maré, Renata também se emociona ao contar que sua casa abrigou reuniões políticas determinantes para o destino político de Marielle e do deputado federal Marcelo Freixo, hoje no PSB. Na casa onde nasceu e foi criada, ela relata as ameaças que passou a receber depois de sua eleição para a Assembleia Legislativa do Rio. "Depois que fui eleita a mais votada do campo da esquerda do Rio, no dia seguinte da votação, já tinha diversas ameaças nas nossas redes sociais, desde xingamento machistas, racistas… Recebo muita coisa do tipo 'presta atenção no que está falando, Marielle morreu porque falou isso'", diz. A deputada, de 39 anos, passou a contar com escolta após sua eleição para Alerj.
A bióloga Alinca Peres da Fonseca, 38, saiu da maternidade com uma fratura na costela. Durante o parto do filho caçula, ela foi submetida à manobra de Kristeller, prática que consiste em pressionar a barriga da gestante para empurrar o bebê. O mecanismo, contraindicado pela OMS e pelo Ministério da Saúde, pode comprometer a saúde da mãe e do bebê. Além das práticas já descritas, também são frequentes relatos de violência psicológica e agressões verbais contra gestantes no trabalho de parto, como "na hora de fazer não gritou" ou "você não está ajudando, seu bebê pode morrer".
Josilene Ferreira de Araújo foi assassinada pelo marido, Diego Pacheco, em 2016. Ela tinha 23 anos quando foi espancada, esfaqueada e asfixiada com um travesseiro. Depois do crime, Diego deixou o corpo da esposa no quarto dos filhos, embrulhado em um lençol. Josilene foi vítima de um crime violento que se mantém em um patamar elevado no Brasil: o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres. Foram ao menos 1.350 feminicídios no ano passado, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Já os filhos dela são vítimas ocultas desse mesmo crime, apesar de não constarem em nenhuma estatística oficial.
Naturalizado e subnotificado, tão complexo quanto invisível, o casamento infantil é definido como qualquer união, formal ou informal, que envolva alguém com menos de 18 anos. Em mais de 94% dos casos, esse alguém é uma menina. Sob o manto de algum consentimento, seja dela, seja de sua família, a união precoce articula vulnerabilidades sociais, raciais e de gênero. Ela rouba uma fase importante do desenvolvimento e amplia as desvantagens de meninas e mulheres, limitando ainda mais suas trajetórias de vida educacional e profissional e tornando-as mais suscetíveis à violência doméstica, seja ela física, psicológica, sexual ou financeira.
Tatiane dos Santos da Silva, 21, vendedora e jogadora de futebol do time local, bateu às portas do Conselho Tutelar Rural em maio de 2017, quando fugiu do jugo paterno no povoado de Inhobim. "Ela chegou com várias lesões no corpo, uma cartela de anticoncepcional e provas de que vivia como mulher do pai desde os sete anos", relata Joyce Fonseca, conselheira que acompanhou a adolescente nos serviços de acolhimento do município.